Não é fácil olhar os espelhos que a Vida vai dispondo em nosso caminho. Negamos, na maioria das vezes, a existência deles. Enormes, iluminados, nítidos! Espelhos!! Destacam qualidades e defeitos na mesma proporção. Olhar-se em um espelho é desnudar-se corajosamente. Ali estamos, tais como somos, nada inventado, nada escondido, tudo revelado. Crescemos quando encaramos esta mirada com maior leveza. Quando compreendemos que somos responsáveis pelo que vemos refletido ali, únicos e definitivos responsáveis. Espelhos não mentem nem fazem acordos e não respondem perguntas. Sinalizam caminhos, possibilidades, verdades. E jamais faça aquela pergunta : " Espelho, espelho meu! Há no mundo alguém mais bonita do que eu?" Sempre haverá, sempre haverá!
Clarice Lispector em sua genialidade escreveu:
"O que é um espelho? Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambólica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente "ad infinitum", liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. - O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. - E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. - A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama. - O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro - e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante - nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água."
Clarice Lispector
Clarice Lispector
Fantástico teu mergulho profundo nos teus espelhos. Me fez lembrar do Caio que sempre escolheu ser ele mesmo e não um arremedo, um Fernando Abreu.
ResponderExcluir"A vida tem caminhos estranhos, tortuosos às vezes difíceis: um simples gesto involuntário pode desencadear todo um processo. Sim, existir é incompreensível e excitante. As vezes que tentei morrer foi por não poder suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilio que eu gosto - mesmo que muitos não compreendam ou não aceitem."