Que horas são?

quarta-feira, 15 de abril de 2015

                             




                    
                               


     


"Sur"

"Nenhum pesadelo hoje.
A folha do sono se espalhe e branca
faça a sequência de horas que você não saberá
porque estará dormindo e assim o balão
que segurava fugiu da sua mão e o último pensamento
foi ao chão com as dúvidas
que deixaram de brilhar seus diamantes inúteis.

Nenhum pesadelo hoje.
Seu sono seja um piano só de teclas brancas,
de notas brancas, todo branco,
de tal modo que não seja mais um piano,
será apenas um cachorro também ele dormindo manso
e nem vontade de saber o que seriam sonatas
ou sonetos ou coisa que o valha.

Nenhum pesadelo hoje. Nenhum.
Descanse. Esqueça. Desimagine.
Não existem estrelas, praças, fome,
estátuas de mármore, estamos felizes,
esqueça que estamos felizes, estamos
em Buenos Aires, esqueça que estamos
longe de casa, não temos casa.

Você é o amor. O amor precisa dormir
para estar moço no dia seguinte.
Por isso é preciso não pensar no dia seguinte.
Nenhum pesadelo hoje. Você é uma menina
e nem tinha um balão entre os dedos,
nenhum balão escapou dos seus dedos.
Estou aqui do seu lado, acordado.


Nenhum pesadelo. Nem sonhos bons.
Apenas a folha branca do sono perfeito
espalhando seu piano branco e perfeito
como o sono de um cachorro que não sabe
o que é o amor e ama. Esqueça o amor.
Você é o amor. Você não é mais uma mulher
e seus anéis, seus cabelos e seu homem.

Apenas durma. Descanse. Ninguém morreu
nunca em nenhum lugar e ninguém jamais
morrerá em lugar nenhum. Não estamos
em Buenos Aires, não estamos neste quarto
de hotel em Buenos Aires. Somos o balão
que escapou de sua mão e sem direção
flutuamos ignorantes disso porque dormimos.

Ou melhor, você dorme. Eu não.
Sou um homem que nunca se esquece
que é um homem e que tem medo. Mas
estou aqui do seu lado.
Sou um cão velando o sono de sua dona.
Sou um piano aceso toda a noite para fazer
mais cintilante o silêncio em torno de sua dona.

Mas você não deve saber de nada disso.
E viverá a perfeição de não acordar no meio
da noite. Não há cães, balões, pianos, esqueça.
A cidade escapou de seus dedos, descanse.
Com eles ficaram seus anéis e seus cabelos
estão lindos. Não há nenhuma hipótese
de pesadelo hoje."


"Sur" é um dos poemas de "Escuta", novo livro de Eucanaã Ferraz. 

"Escuta" será lançado no Rio de Janeiro no dia 16 de abril, às 19h, na Livraria da Travessa - Ipanema.


segunda-feira, 6 de abril de 2015

sábado, 4 de abril de 2015




O AMOR




"Chega de escrever
Sobre o amor
Como tenho feito,
Chega de trazer
a exaustão e a dor
ao peito machucado,
chega de esperar
fecundidade na
areia calcinada
Vou atrás de outro
assunto, de outro
sentimento menos
bruto e selvagem
do que o amor,
vou procurar
alhures
encontrar a
suavidade que o
amor não traz,
parto em busca
de uma outra
fome,
de uma outra
sede,
de um parto
de nova criatura
Vou à História,
à Geografia,
à Física,
à Química,
à Biologia
e a algum outro
saber humano
que bem maneje
malabares
dentro do tempo
e nalgum espaço,
há de haver um certo
entendimento
organizado pelos
estudiosos, pelos
lentes das universidades,
pelos gênios dos laboratórios,
pelo engenho humano
desde o princípio
de nós
E transito agora
entre livros,
nas vastas bibliotecas
dos eruditos,
dos sábios,
das pessoas de
imensa formação,
e abro todas as folhas,
e fecho todas elas
também,
porque são insípidas
e são cansativas
e são insensíveis,
e prossigo agora
a conversar com
esses homens todos,
alimentando minha
esperança de odiar o amor
porque nada me trouxe,
nada me deu
E nisso estou há muitos anos,
e caminho já fatigado
por todas as estradas
que conheci
depois que o amor
de mim desdenhou,
adoeceu meu coração
com sua doença
incurável,
e me trouxe todos
os custos,
todos os preços
e todas as quantias
que um pobre espírito
há de pagar
- e não pode pagar -
para sorrir
enquanto ama
e é amado
Eu sou sua vítima
e quero seu fim,
sua morte,
e pesquiso ainda
em bibliotecas
e consulto
homens de saber
para que me digam
como bem odiar
o amor,
e eles me dão conselhos
confusos
e me dão bússolas
que não quero,
palavras que desconheço
e fraternidade duvidosa,
não sabem falar do amor
e não sabem como odiar
o amor,
como eu odeio há tantos
anos,
desde que morri de amor
e fiquei insepulto
como um Polinice
sem Antígona,
e desde então
sobrevoam pássaros
mórbidos
sobre meu corpo
caído ao chão,
morto de amor
Mas eu,
depois de tanto tempo
buscando matar
quem me matou,
definindo meu
maior oponente
e planejando
fazê-lo sofrer
como a mim
ele fez,
eis que abro todos
os livros do mundo,
irrompo em todas
as bibliotecas
da Terra,
converso com
todos os eruditos
e todos os sábios,
todos os professores,
todos os antigos
preceptores,
e vejo que não há,
nem nos livros,
nem nas bibliotecas
e nem no coração 
dos homens de saber
um assunto que,
mesmo sendo
esse horrível
amor,
a ele supere
E é quando
então sinto a 
desesperação
de precisar seguir
com ele sobre mim
revoando,
de precisar cumprir
meus dias
com o amor na cabeça,
de aceitar
meu coração arrebentado
E depois, por fim,
definitivamente estafado
por tanta busca,
vem-me subitamente
a impressão
de que o amor
apenas me entrara mal
ao coração,
e que agora, se bem nele entrar,
será o que sempre
disseram os que não
consultei,
- eles, os poetas -
para tornar-se o
alimento da minha fome
e a água da minha sede,
e eu o perdoarei
porque não o
havia compreendido
diante da frágil
tessitura que o compõe,
da sofisticada essência
que possui
e das filigranas
- finas ourivesarias
da emoção -
que me contam que
“sem amor, eu nada seria”..."



Pedro Moacyr Pérez da Silveira, é professor de Filosofia do Direito, na Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul. É meu amigo e escreve com a sensibilidade dos poetas.




terça-feira, 31 de março de 2015

O QUE ESPERAR DE UMA RELAÇÂO






"Que não tenha mentiras. Nem traição.

Que perceba o que gera ciúme, não se envaideça da insegurança, e procure esclarecer as dúvidas com firmeza.

Que proporcione segurança, sem falsos compromissos. Que o outro possa se ausentar com tranquilidade não precisando se preocupar se você está fazendo o que falou.

Que não exerça a cumplicidade do mal com os próximos, desmerecendo quem você ama.

Que não permaneça de conversa e flerte com ex e interessados, que não ache graça em realizar as coisas escondido, como se fosse mais esperto.

Que não crie juízo final em cada discordância.

Que feche o passado amoroso por respeito e não traga à tona o quanto já foi alegre e livre antes. Afinal, experiência que virou sabedoria é silenciosa.

Que não resvale em soberba e prepotência na hora de ouvir conselhos e aceite opiniões diferentes da sua.

Que respeite quem viveu mais e pode exemplificar dilemas.

Que não desmereça o significado de nenhum presente ou agrado.

Que entenda o senso de humor e a alegria de sua companhia.

Que participe do trabalho do outro.

Que faça demonstrações de como seu par vem sendo especial e decisivo em sua vida.

Que recorde os momentos de entrega e romance para nunca se distanciarem da paixão.

Que conte o que está pensando, antes de qualquer pergunta.

Que exponha seus gostos e não cobre adivinhação. E que não se insulte em repetir as preferências. Esquecimento nem sempre é desinteresse.

Que destaque o quanto prefere viajar a dois, para dividir as lembranças e somar as memórias.

Que organize férias e alimente expectativas.

Que não deboche pelas costas.

Que não repita as ofensas que mais doem numa discussão.

Que não agrida fisicamente por nada neste mundo.

Que os projetos sejam cumpridos e jamais abandonados. Pela insistência, diferenciamos o sonho do capricho.

Que jamais despreze o salário ou gaste algo sem a dimensão do esforço que custou.

Que as atividades planejadas diariamente, ainda que desagradáveis, não sejam canceladas.

Que não use dois pesos e duas medidas, que aquilo que peça também seja feito de sua parte.

Que abra espaço para o programa predileto do outro uma vez por semana.

Que prepare um jantar ou um café de surpresa para roubar risos.

Que conforte na doença e acalme na tristeza.

Que tire um dia no final de semana para preguiça da conchinha e da tevê.

Que participe das contas, do planejamento da casa.

Que festeje as virtudes do outro com os amigos e que exponha, reservadamente, os defeitos que incomodam.

Que combata as injustiças com ardor.

Que agradeça as gentilezas retribuindo com novas gentilezas.

Que não incentive intrigas e procure aproximar os familiares.

Que todas essas regras sejam espontâneas e esquecidas dentro da felicidade. Pois apenas existe um jeito de amar que dá certo: quando amamos com caráter."


(Fabrício Carpinejar)



terça-feira, 3 de março de 2015




"A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou pra mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos". 
 
Simone de Beauvoir









sexta-feira, 23 de janeiro de 2015







Maria Teresa Horta
(Lisboa, n. 1937)
in "As Luzes de Leonor", D. Quixote, Lisboa, 2011



(para visualizar melhor, clique na imagem, com o lado direito do mouse e selecione "abrir imagem em uma nova guia")



quinta-feira, 22 de janeiro de 2015







A NATUREZA E A JANELA


"Gosto de olhar para a
Natureza,
tudo parece impossível de ali estar
com a exatidão
da beleza ou da feiúra,
Não gosto de olhar para a
Natureza,
parece não haver esforço algum
para que tudo seja como é
Há esse Deus de que falam
as grandes religiões,
e há esses deuses de que falam
as pequenas esperanças
das transcendências menores,
E enquanto isso eu fico
na janela desse degredo vagabundo
a que me entreguei,
olhando prédios, carros e pessoas
com a convicção do acaso
e com a desconfiança
sobre uma Criação comovente
Um Deus, uns deuses,
uns caras assim, lá de cima,
fazendo tudo ser
fazendo tudo estar
fazendo tudo mudar
fazendo a história de tudo
se dialetizar,
e nos dando a impressão de
que temos alguma importância,
Esses sujeitos, sim, me trariam
alguma alegria e estupefação,
Mas não dão as caras nunca,
ficam por aí escondidos até
que a descrença chegue
e perca o valor
a extraordinária existência
etérea
sobre a qual nos acostumamos
a imaginar os grandes criadores
E dessa janela deixo escorregar
um pouco de whisky
para dentro desse corpo que vai
ficando velho,
E deixo o pensamento caminhar
com a velocidade dele mesmo,
com a agilidade
que hoje ainda tem,
mais lenta,
mas trazendo as cautelas
que o tempo me deu
Não lhe dou pressa,
o pensamento não carece
de correr,
E o whisky me traz
lentamente a impressão
de que ele é mais forte do que um deus,
de que ele vale mais do que todas as igrejas,
de que não é nocivo porque
vai matando o corpo
e destroçando a lucidez
Não tenho muito interesse em lucidez
e isso não me faz falta,
acostumei-me a realidades
paralelas
e nelas fiz meu ninho
de pássaro atormentado
e louco
O que me encanta nesses
tragos inúteis desses dias
inúteis
é a sensação de que posso pensar
como um deus
e fazer o mundo rodar
para onde eu queira,
sempre a paz e algum alento,
sempre longe desse meu desespero,
dessa ausência de que falava
Camile Claudel,
e que sempre a acompanhava,
“Il y a toujours quelque chose d'absent
qui me tourmente”
E assim vou indo,
até desaparecer toda minha humildade,
até brotar do chão minha presunção,
até que eu fique pujante,
até sentir que sou vigoroso
o suficiente para criar um mundo
desde o fundo
do fundo
da minha aflição
E depois me tornar mortal
quando o whisky irá embora,
quando a Natureza ficará órfã,
quando eu restaurarei a sobriedade
tão pretendida pelos de bom senso,
tão óbvia para os cuidadores da vida
Tão clara, tão clara
Mas aí, quando recupero os sentidos,
todos os sentidos,
e quando deixo de ser um desses deuses
fundamentais,
ganho novamente a condição humana,
que não sei de onde vem
e nem para onde vai,
E então o mundo todo fica mais triste
e meus olhos choram um pouco
e a poesia desaparece
E com esse mesmo rosto
de sempre,
quando somente as marcas do
tempo
me modificaram,
eu olho novamente pela minha janela
e me sinto a própria Natureza,
eu sinto que sou a substância nascida
para ser o que fui,
para ser o que sou,
a argila da indignação,
a recusa pedagógica do correto,
o ungido pelo óleo viscoso
da normalidade,
esse lugar de onde me afasto
com gestos suaves e delicados,
e tudo o mais que esperam de mim
E é nesse momento que fico contra todos
porque sou feito de estranhezas,
Mas prossigo anônimo
entre todos os adversários
que nada percebem,
Tenho os olhos cheios de sangue, 
o coração feito um tarol militar,
e o desejo de guerrear nas ruas
da minha cidade,
feito um jovem atrás de barricadas
se aventurando no caminho da morte,
mas sou pacífico, não faço mal a ninguém
É que uma estratégia para viver
talvez seja sempre necessária,
mesmo entre mortos imaginários,
para atingir uma felicidade
um tanto rara, quase única,
mas indispensável
a um espírito
irrequieto como bicho
enjaulado."






Pedro Moacyr Pérez da Silveira é professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Pelotas, RS.





sexta-feira, 16 de janeiro de 2015




"Te olhei de longe e me vi por perto."


                           Lívia Garcia Roza









segunda-feira, 12 de janeiro de 2015




"(...)Tinha vantagens não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado."




Adélia Prado, in "Quero minha mãe"


domingo, 11 de janeiro de 2015




"Se te pareço noturna
e imperfeita
Olha-me de novo."


Hilda Hilst





      Edwin Holgate, Suzy, c. 1921; National Gallery of Canada



"angústia é lâmina
mais 
que afiada
e no seu corpo
já não cabe mais
cicatriz"



Nydia Bonetti



sábado, 10 de janeiro de 2015







                           














Dia 10. 

Em dezembro, janeiro era a promessa que alimentava os dias. 
Em dezembro os corações coloriam as férias de janeiro com as possibilidades que sustentam os sonhos.
Em dezembro a luz voltou a iluminar o olhar pálido de quem perdeu a esperança. E as sementes brotaram no jardim.
Em dezembro as saudades foram ditas, gritadas, escritas, registradas.
Em dezembro houve a ressurreição do que estava guardado, silenciado e aquietado. E as promessas de dias novinhos e felizes transformou-se em presente de Natal.
Em dezembro, janeiro era uma palavra/encontro.
É janeiro. O décimo dia.
Ainda é sonho. Que janeiro seja uma palavra/realidade. 
Que assim seja!











sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O PRIMEIRO ATENTADO



"— Senhor?

— Pois não?

— Adão está retornando Sua ligação. Ele está na linha sete.

— Pode passar.

— Sim, Senhor. Só um minuto.

— Alô?

— Oi, Adão, tudo bem?

— Tudo e o Senhor?

— Adão, que história é essa de que você atacou as girafas?

— Ah, o Senhor ficou sabendo?

— É evidente que Eu fiquei sabendo. O que aconteceu?

— Bem, na verdade, foram elas que começaram. Faz tempo que elas estão espalhando por aí que o Senhor não existe. Que o Senhor é uma invenção minha, e que os outros animais não deveriam mais acreditar no Senhor. Aí começaram a espalhar umas folhas de bananeira com piadas sobre isso.

— Piada?

— Isso. Eram desenhos insinuando que eu era o dono do Paraíso e havia inventado Sua existência. Outros mostravam o Senhor com chicotes e porretes, obrigando os animais a acreditarem na Sua palavra. Aí eu fui ali até onde as girafas ficam... Perto do lago, sabe?

— Sei.

— Fui até lá e arranquei todas as folhas das bananeiras que tem ali perto. Assim elas não fariam mais desenho nenhum. E expliquei que se elas continuassem com isso, eu iria voltar ali e faria muito mais que apenas arrancar as folhas das bananeiras.

— Sei.

— Mas no dia seguinte elas espalharam outros desenhos em folhas de bananeira. Não sei onde arrumaram as folhas.

— E o que tinha nos novos desenhos?

— Eu. Eu socando os outros animais e embaixo disso, a frase “Espalhando a palavra do Senhor”.

— Certo. E depois disso?

— Mandei pararem com isso. Acredita que no mesmo dia começaram a espalhar novos desenhos? Mostravam uma girafa amordaçada e a frase “não conseguimos dizem amém para certas coisas”. Aí eu voltei até o lago. 

— O que você falou?

— Não falei nada. Assim que encontrei uma delas, voei direto no pescoço. Quando eu a derrubei, as outras apareceram e eu dei socos e pontapés em todas elas. Acho que aprenderam a lição.

— Adão... Posso fazer uma pergunta?

 — Claro.

— Você é idiota?

— Oi?

— É uma pergunta simples. Você é idiota?

— Bem...

— Se você é incapaz de responder se é idiota ou não, é porque a pergunta já foi respondida. Vou tentar uma última vez. Você é idiota?

— Não. Não sou.

— Então por que você está agindo como se fosse?

— Como assim?

— Quem lhe deu o direito de agredir as girafas?

— Bem, elas estavam falando mal do Senhor. Falando que o Senhor não existe.

— E daí?

— E daí que é errado.

— Ah, é? Por quê?

— Bem... Porque o Senhor existe. Tanto que está aqui falando comigo.

— Sei. E você acha que isso lhe dá o direito de agredir um animal que não acredita em Mim?

— Bem...

— Você já parou para pensar que qualquer animal do Paraíso tem o direito de não acreditar em Mim?

— Mas foi o Senhor quem criou o Paraíso. E se foi o Senhor quem criou o Paraíso, foi o Senhor quem criou os animais. Então eles são obrigados a acreditar no Senhor.

— Obrigados?

— Isso.

— Adão, você acha que Eu criei o Paraíso porque você acredita em Mim. Se outro animal não acredita em Mim, é lógico que ele vai acreditar que o Paraíso foi criado de outra forma. Ele tem esse direito. Ele pode acreditar no que quiser. Aliás, ele pode até acreditar em nada, se preferir.

— Como assim, acreditar em nada?

— Ele pode acreditar que não foi criado por ninguém e que apenas apareceu aqui. E que o Paraíso sempre existiu, e que Eu não tenho nada a ver com isso, porque Eu não existo. É um direito dele.

— Mas é errado. O Senhor existe. As girafas...

— Você já parou para pensar que Eu posso existir para você ao mesmo tempo em que posso não existir para as girafas? O direito que elas têm de acreditar no que quiserem é exatamente igual ao seu de acreditar em Mim. E sabe o que você e as girafas devem fazer a respeito disso?

— O quê?

— Nada. Absolutamente nada. Vocês devem apenas continuar convivendo, cada um acreditando no que quiser, mas sem interferir com a crença do outro.

— Eu não posso conviver com um animal que não acredita no Senhor. Isso é errado.

— Adão, se você simplesmente se recusa a conviver com um animal que não tem fé em mim, Eu prefiro acreditar de uma vez por todas que as girafas tem razão. Talvez seja mais fácil Eu acreditar que não existo e que nós nunca nem conversamos, ao invés de aceitar que você é radical a este ponto. Prefiro acreditar que você é esquizofrênico e está sentado na sua caverna falando sozinho no escuro feito um louco, e pensando em maneiras de atacar as girafas. 

— Mas as girafas também não deviam fazer aqueles desenhos.

— Adão... Há quanto tempo você Me conhece?

— Bastante.

— Você realmente acha que Eu me importo com isso?

— Bem, é porque os desenhos...

— Adão, Eu fiz uma pergunta. Você acha que Eu me importo com um desenho?

— Não. Acho que não.

— Certo. Sabe por quê? Porque Eu estou ocupado demais me importando com as escolhas que vocês fazem todos os dias. Quero ver vocês felizes com vocês mesmos, com suas vidas, com seus valores. Quero ver vocês aprendendo e crescendo. Isso é importante para mim. Não um desenho feito numa folha de bananeira.

— Entendi.

— Adão, você acredita em Mim? Acredita que Eu existo?

— Lógico.

— Por acaso os desenhos das girafas fazem com que você acredite menos em Mim?

— Não.

— Então, pronto. Além disso, socar as girafas não vai mudar a forma que elas pensam. Vai apenas fazer com que elas sintam raiva de você. E, como resposta, você vai sentir raiva delas. E este ódio vai apenas aumentar.

— Entendi.

— E vai chegar um momento que vocês vão se odiar sem ao menos lembrar o motivo, porque logo essa raiva se tornará maior do que qualquer crença que vocês tiveram um dia. E aí finalmente você e as girafas vão passar a acreditar na mesma coisa: que o ódio é a resposta.

— Bom, desculpe. Mas eu fiz isso em Seu nome, porque pensei que...

— Meu nome?

— Sim.

— Em Meu nome? Eu pedi para você ir lá e socar as girafas? Eu pedi para você arrancar as folhas de bananeiras, ou para que você deixasse as girafas aterrorizadas?

— Não.

— Então, não diga que foi no Meu nome. Se você quiser ir lá e socar as girafas, faça isso porque você quis. Mas faça isso por você. Nunca mais diga que fez algo assim em Meu nome. 

— Mas é porque as girafas...

— Adão, você lembra o que Eu disse a você sobre os animais do Paraíso, numa das primeiras vezes que conversamos?

— Que eu devia amar todos os animais.

— Todos os animais ou todos os animais que acreditam em Mim?

— Todos os animais.

— Exato. A palavra chave é amor, Adão. O amor precisa ser maior que tudo. Maior que você, que as girafas, até mesmo maior que Eu. O amor precisa ser maior que qualquer crença ou forma de pensamento. Além disso, o amor tem uma coisa que as crenças não têm.

— Qual?

— Você pode não conseguir provar sua crença, mas consegue provar que o amor existe. Não em um momento ou outro, mas em todos os dias, com respeito, tolerância e compaixão. Independente de qual seja a sua fé. Porque todas as crenças são apenas expressões diferentes do mesmo amor. São caminhos diferentes que levam ao mesmo amor. Por isso não importa o nome da fé, e sim o amor que ela ensina. 

— E aqueles que não acreditam em nada?

— Eles não precisam acreditar nesta ou naquela fé para acreditarem no amor, e saberem que ele é necessário.

 — Não sei se entendi.

— Você ainda vai entender. Todos vocês. Vai demorar, mas vocês ainda vão entender.

— Sim, Senhor.

— Amanhã você vai pedir desculpas para as girafas.

— Certo. E vou falar que o Senhor perdoou o fato de que elas...

— Não, Adão. Você vai apenas pedir desculpas. E não vai falar uma palavra sobre Mim. Eu não perdoei as girafas porque elas não erraram Comigo. Quem errou foi você. Você errou com elas e errou Comigo. E você vai remediar isso.

— Certo.

— Não faça mais isso. Por favor.

— Sim.

— Até logo.

Naquela noite, Deus desceu até o Paraíso e caminhou pelos gramados. Adão e os outros animais estavam dormindo e não perceberam sua presença — caso estivessem acordados, não teriam reparado que cada animal enxergava Deus de uma forma diferente. Ele era o Deus de Adão quando passou perto da caverna de Adão, era o Deus dos macacos quando passou perto da floresta, era o Deus dos leões quando passou pelas savanas. E era o Deus das girafas quando se aproximou dos lagos, ajoelhou-se ao lado delas e curou seus ferimentos. 

Mas nem todos os animais estavam dormindo. Logo, a serpente estava ao Seu lado. Esperou Deus terminar de cuidar dos ferimentos das girafas antes de falar.

— Você sabe que eu não tenho nada a ver com isso, certo?

— Eu sei.

— E você sabe que isso ainda vai dar muito problema? Por séculos e mais séculos.

Deus respirou fundo. 

— Eu sei.

— Escute, quer beber alguma coisa e conversar? Eu tenho uma garrafa de...

— Não. Ainda preciso recolocar as folhas das bananeiras. Mas acho que depois quero ficar um pouco sozinho.

Deus disse isso recolocando as primeiras folhas nas bananeiras. Em todas elas, escrevia a frase “Eu Sou Charlie”. A serpente observou por alguns instantes antes de falar novamente.

— Olhe, pode subir. Vai descansar. Eu arrumo as árvores.

— Mesmo?

— Sim, fique tranquilo, eu resolvo isso. Pode subir.

— Certo. Obrigado.

Assim que Deus desapareceu, a serpente começou a recolocar as folhas. Estava na terceira folha quando sentiu o vento. E, antes da quinta folha, uma enorme tempestade começou a desabar sobre o Paraíso, fazendo todos os animais se aconchegarem em suas tocas, menos a serpente, que olhou para o céu, assustada.

Nunca havia visto Deus chorar tanto."



Rob Gordon
Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.