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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

CARTOLA, SUA FILHA CANTORA E O MUNDO DOS MESQUINHOS


Sidnei Schneider



"Após receber nova mensagem apócrifa sobre Cartola, na qual se afirma que sua filha teria sido prostituta, e tendo a percepção de que é incorporada como verdadeira por quem menos se espera, retomo mais uma vez a refutação dessa maledicência, associada indevidamente à letra de uma de suas mais belas canções, a célebre O mundo é um moinho.

Ver prostitutas onde elas não existem diz muito da psiquê inconfessável, da consciência prostituída e do ranço colonial dos que se dão ao exercício de inventar essas lorotas. Repassadas, na menos terrível das hipóteses, por quem não sente a menor desconfiança ante o que é apenas estúpido racismo e sentimento antipovo, ou, o que dá no mesmo, sem ter a mínima noção de que ao repassá-las se expõe ao ridículo, são úteis apenas a quem deseja o povo brasileiro eternamente dividido, para melhor subjugar o país.

“Escutar é complicado e sútil”, anotou certa vez o escritor Rubem Alves, ele mesmo relembrando Alberto Caeiro, “Não é bastante não ser cego/ Para ver as árvores e as flores.” Na tal mensagem, a reprodução da letra de O mundo é um moinho vem antecedida por este brinco de erudição e amor ao povo, em destaque e sublinhado: "Cartola fez esta música quando soube que sua filha era prostituta".


LEITOR DE POESIA


Antes de esmiuçar a questão, e já solicitando a licença de quem aguarda o seu desenvolvimento, talvez fosse interessante examinar outra inverdade. Volta e meia alguém diz que Cartola era analfabeto, pretendendo que, assim, estaria enaltecendo ainda mais sua criatividade enquanto letrista e músico. De variadas profissões ao longo da vida, entre as quais a de pedreiro e funcionário público, Cartola viu-se na contingência de trabalhar como lavador de carros e vigia de prédio numa época difícil, quando, mesmo já compositor de renome, chegou a ser dado como desaparecido ou morto, mas nem por isso era analfabeto. Se existiram, e talvez possam ainda existir, compositores e poetas sem letramento, por que tanta insistência no que não é verdade? Por que uma pessoa de origem humilde (não me soa precisa essa última palavra, mas vá lá) e pele escura teria necessariamente de ser analfabeta?

Herdeiro da tradição do samba e do choro, entre outros gêneros, Cartola era leitor de poesia. Para além das letras da mais alta inventividade que o precederam ou acompanharam, como as dos seus amigos Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, importa aqui saber o que lia em livro esse suposto analfabeto. Em entrevista ao crítico musical Tárik de Souza, em novembro de 1974, revelou o que fazia para compor: “Eu não tinha interesse nenhum por leitura. Mas um dia, quando eu estava mais ou menos com 25 anos, um primo me deu um livro de poesias de Humberto de Campos e eu gostei muito e passei também a ler Castro Alves e Guerra Junqueiro. Tem letras que vêm quase prontas. Outras vêm só com um pedacinho. Ponho num rascunho e guardo num canto até vir a inspiração. Prefiro fazer pouco mas fazer bem”. Tárik, que entrevistou Cartola diversas vezes, deu posteriormente um depoimento ao programa De Lá Para Cá, da TV Brasil: “Ele lia e citava Castro Alves e [o poeta português] Antero de Quental, era um aficcionado da poesia brasileira”.

Os pesquisadores Marília Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho, no livro Cartola: os tempos idos (Gryphus, 2003), anotam: “A instrução oficial de Cartola resumiu-se ao curso primário, muito bem feito. A vida, porém, encarregou-se de completar-lhe a educação, fazendo-o ler poetas como Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, pessoas como Carlos Cachaça, Aluízio Dias, Noel Rosa, Carmem Miranda, Silvio Caldas e Villa-Lobos”. A tese de mestrado da neta de Cartola e Dona Zica, Nilcemar Nogueira (filha de Glória Regina), De dentro da cartola: a poética de Angenor de Oliveira (FGV, 2005), acrescenta à lista o nome de Luís de Camões e revela ser Guerra Junqueira o seu poeta preferido. A canção “Verde que te quero rosa” (Cartola e Dalmo Castelo), que daria título ao LP de 1977, dialoga com versos de Federico Garcia Lorca: “Verde que te quero verde./ Verde vento. Verdes ramas”. Ronaldo de Oliveira, filho adotivo de Cartola e Zica, entrevistado por Mônica Ramalho em 2002 para a pesquisa do musical Obrigado, Cartola!, declarou que ele “Podia não ter dinheiro para mais nada, mas não abria mão do jornal” (com o que não se deve concluir, evidentemente, que assimilasse sem crítica qualquer coisa que os jornais dissessem, muito pelo contrário, sem destacar que, em certa época, a leitura pudesse ser a do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, defensor dos legítimos interesses nacionais).

Além de ler a melhor poesia que estava ao seu alcance, era artista atento à complexidade do mundo, em constante exercício quanto a sua arte e seu instrumento, pois só de antecedências, mesmo que poéticas e musicais, ninguém realiza nada que permaneça. Então, de onde vem essa ideia de um Cartola analfabeto, se esse lavador de carros era mais letrado na complexa arte da poesia, como se pode facilmente presumir, do que seus detratores e supostos defensores? Um sujeito pobre e preto não poderia ter levado adiante, no mais alto grau, além de toda a história do samba, a tradição poética e letrada do país no campo da canção popular? Teria que ter lhe caído por de cima, sem qualquer esforço e aplicação, como efeito de mágica ou milagre? Por quê?


HISTÓRIA DE CREUZA

Quanto à inverídica prostituição, para começar, Cartola não gerou filhos, embora tenha criado os de Deolinda e Dona Zica, adotivos ou não. Nascido Angenor de Oliveira, ele e Deolinda, sua primeira esposa, adotaram Creuza Francisca dos Santos (1927-2002), nascida no Morro da Mangueira, filha de Rosa do Espírito Santo e Agenor Francisco dos Santos. Estes, os pais biológicos, eram amigos de Cartola e Deolinda, sendo esta última madrinha de batismo da menina. Quando Rosa, a mãe, faleceu em 1932, Creuza tinha apenas cinco anos, e Deolinda e Cartola, juntos há sete naquela época, ficaram com ela. Artista precoce, Creuza começou a cantar aos 14 anos, acompanhando Geraldo Pereira, outro grande compositor de Mangueira, em apresentações na Rádio Nacional, nas quais também cantava músicas de Cartola, que a levava e ensaiava. Assim, a menina aprendeu composições que mais tarde, com a morte do pai, resgataria da memória, inclusive várias inacabadas. Por essa época, integrou enquanto corista o grupo As Gatas, que acompanhava Herivelto Martins. Na década de 1960, apresentou-se ao lado de Cartola em shows na Boate Jogral (Ribeirão Preto-SP), no Zicartola e no Teatro Opinião (RJ), e também cantou ao lado de Genaro da Bahia.

Creuza tornou-se cantora (e não prostituta!) e participou da gravação do LP Cartola, o segundo com o mesmo nome, lançado pela Discos Marcus Pereira em 1976, hoje disponível em CD, no qual está a canção O mundo é um moinho. Em dueto com Cartola, ela interpretou “Ensaboa” (Monsueto e Cartola) e “Sala de Recepção” (Cartola). Em 1982, a gravação de "Ensaboa" foi inserida no disco "História da música popular brasileira" relativo a Cartola, vendido em bancas de revista.

Em 1984, quatro anos após o falecimento do pai, ela participou do LP Cartola entre amigos, com várias composições inéditas de Cartola. Creuza cantou a inédita "Rolam dos meus olhos" (Cartola) e integrou o coro nas faixas "Não" (Cartola e Aluízio Dias), "O samba do operário" (Cartola, Alfredo Português e Nelson Sargento) e "Deus te ouça" (Cartola e Paulo da Portela). Em 1986, o compositor e violonista Aluízio Dias fundou a Velha-Guarda da Mangueira e a convidou. Ao lado de Dona Neuma, Tia Zélia, Soninha, Zenith, apresentava-se regularmente na quadra da escola. No CD Mangueira chegou (Japão, 1989/ Brasil, 2000), interpretou a inédita "Pedi perdão" (Cartola) e, em dueto com Aluízio Dias, "O amor é isso?" (Aluízio Dias e Cartola). Em seu último show, como integrante da Velha-Guarda da Mangueira, na Sala Funarte Sidney Miller, apresentou duas inéditas de Cartola: "Serviço de roça" e "Por motivos de força maior", ambas finalizadas pelo filho Reizilan dos Santos, neto de Cartola. Em 2002, após seu falecimento, foi relançado em CD Cartola entre amigos. (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira)


O MUNDO É UM MOINHO


Ao denunciar a mentira, Irinéa dos Santos, a mais velha dos cinco filhos de Creuza, disse que Cartola compôs O mundo é um moinho ao refletir sobre o que reservaria a vida para Creuza, então uma menina de 16 anos, que passava a se interessar pelos rapazes. Preocupações de qualquer pai amoroso em relação a sua filha, às quais é preciso somar a noção de liberdade artística. Cartola, igual a qualquer compositor, devia interessar-se pelo que a canção podia dizer aos outros, os seus ouvintes, e jamais a reduziu à situação doméstica. Visto que relevante é a maneira como cada ouvinte se apropria da canção, tornando-a pertinente à sua vida e experiência, e eu nem relataria o que relatei não fosse a necessidade de refutar algo tão ignominioso. O poeta e abolicionista Cruz e Sousa, no livro Faróis, ao antever as dificuldades do seu rebento na sociedade escravocrata, produziu algo de tom similar no poema “Meu Filho”: “Minh’alma se debate e vai gemendo aflita/ No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:/ Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,/ Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!”

Coloque-se o leitor no lugar dos filhos e netos de Creuza e Cartola, da população negra do nosso país, dos menos aquinhoados de qualquer descendência, que verá melhor, se acaso não for de um desses contingentes, a gravidade e a dimensão da ofensa perpetrada.

Num vídeo disponível na rede, recorte do documentário Cartola, música para os olhos, dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda (2006), pode-se ver Cartola, acompanhando-se ao violão, cantar O mundo é um moinho a pedido do pai, que não via há anos (“Cartola e seu Pai - O Mundo é um Moinho” está com mais de 1, 652 milhão de visualizações no YouTube). Suponho que, se Cartola soubesse do epíteto de analfabeto, além de agradecer, declinando de tão honrosa Titulação Acadêmica, talvez até explicasse que um compositor popular ou negro não precisa ser iletrado, nem forçadamente pobre o tempo inteiro: aos 70 anos, perto do final da sua existência, ele pôde desfrutar, com muito orgulho, de algum conforto na casa de Jacarepaguá e adquirir um automóvel, que um familiar conduzia. As dificuldades da vida, porém, o maltrataram tanto, que em certos ângulos do vídeo, filmado bem antes dessa vitória, ele parece mais velho do que o próprio pai. É, gente assim, sensível para a arte e os outros, e dura o suficiente para prosseguir com a vida, deve mesmo despertar a ira, a inveja e a maledicência de certos espíritos."


O MUNDO É UM MOINHO

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés

(Cartola)







Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista.
Livros: Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997). Participações: Poesia Sempre (Biblioteca Nacional/MinC, RJ, 2001), Antologia do Sul (Assembléia Legislativa, Porto Alegre, 2001), O Melhor da Festa 1 e 2 (Nova Roma, 2009; Casa Verde, 2009), Moradas de Orfeu (LC, Florianópolis, 2011) e outras dez. Participa do projeto ArteSesc, membro da Associação Gaúcha de Escritores.

Texto postado neste link

Blog do Sidnei 





O último milagre


Pedro Gonzaga



"E quando não houver mais distância e nem sombras, e quando tudo estiver às claras em óculos capazes de transformar as pessoas em prospectos de investimento, e quando as coisas forem de tal modo esvaziadas de fantasia — a ponto de só nos restar interesses práticos nos relacionamentos —, será que estaremos satisfeitos, libertos da última forma de milagre?

Simon May, em Amor, uma História, não à toa compara o sentimento amoroso (seja o humanitário, o familiar, o amical, o romântico) a um evento religioso no mundo, capaz de oferecer a quem o sente pertencimento e identidade, perspectiva de duração e de porvir, sem os quais a experiência humana tende a mergulhar no deserto do real, onde o sem-sentido natural de todas as ações vem a se tornar insuportavelmente inquietante. Para ajudar o argumento de May, basta vermos como vivem os que se esqueceram da transcendência do amor, capazes de adorar apenas os ícones (corpos), logo iconoclastas, logo incapazes senão de colocar novos ícones no mesmo lugar.

Em um sentido clássico (as revoluções dos costumes não o modificaram), o amor foi construído a partir de uma realidade física — o objeto eleito, associado a uma idealização desta realidade — a projeção do objeto, formada sobre o que desconhecemos (assim também o erotismo), que se revelará sempre de um modo diferente do antes imaginado, em luminoso choque com o que a fantasia inventara antes (no latim invenire é encontrar). Contraditório abismo, desconcerto que fez o autor de Os Lusíadas, Camões, dizer: "Da alma um fogo me sai, da vista um rio;/Agora espero, agora desconfio,/Agora desvario, agora acerto". Eleição cega, improvável e temerosa, beatífica, milagre por nós mesmos engendrado.

Mas imaginar hoje cansa. Supor é laborioso, o milagre, incerto. Simplicidade. Fotografemos tudo. Mistério se compra na butique. Para os recessos da casa sagrada, o sol das redes sociais. Mostremos tudo, rapidamente, no quero-não-quero de dedinhos ágeis no Tinder, submetamos desde já à faceirice boboca de balcão de bar de aplicativos tolos todas as pessoas possíveis, não com a doçura de um Petrarca, ou a cortesia de um Dante, não com o lirismo de um Bandeira, ou mesmo a dureza de um Drummond. Amemos como vampiros idiotizados, já sabemos a verdade, já a sabemos e a compartilhamos: os zumbis elegerão nossa nova Beatriz."



Jornal Zero Hora, Segundo Caderno, 05/12/2013




terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Inspiração

Paris 1950







DEZEMBRO





"Reveja teus dias e meses
Reveja teus olhares passados
Aqueles que você não soube dar
Ou ainda aqueles que ficaram a esperar de ti.
Reveja os maus humores
Reveja as alegrias que lhe foram concedidas
E compartilhe estas alegrias, 
Pois sempre haverá um olhar de esperança numa criança faminta de carinho.

Dezembro chegou

Reveja teus amigos
Repense as tuas negociações com a vida
Repense tuas generosidades que ficaram esquecidas.
Ser generoso não é dar o que te sobra, 
Mas repartir aquilo que você percebe de que o outro é carente.

Dezembro chegou

Repense os livros que não leste
Repense os livros que não deste
Repense os versos que não recitaste
Repense os passarinhos em seus voos
Repense as crianças sem asas
Repense os idosos com muletas
Seja asas para os que ainda não aprenderam o voo da vida.
Seja amparo para os que fraquejam diante do cansaço da vida.

Dezembro chegou

Reveja teus pais
Reveja teus familiares
Reveja teus filhos
Ou os parentes dos teus amigos.
Sempre haverá uma família a tua espera
Para te receber ou para que os acolha.

Dezembro chegou

Reveja tuas xenofobias
Pois os estrangeiros
São passageiros desterrados em busca de terra firme.
Seja terra fértil para aqueles que estão longe de suas casas e,
muitas vezes, a casa desabitada é só o eu interior: ethos. 

Dezembro chegou

Repense tua vida para o próximo ano
Repense tuas ideias, teus ideais
Repense tuas aventuras
Teus amores e não fujas de tuas dores.
Repense teus propósitos
Repense teus projetos
Repense teus sonhos,
pois talvez a realidade concretizada só esteja esperando teu próximo passo.

Dezembro chegou

E com ele a verdade maior das festas:
dos presentes e dos ausentes. 
Repense, pois o grande presente talvez seja a presença dos ausentes.
Seja 'presente' para os outros. 

Dezembro chegou

Este ano foi de plantio
O próximo será de colheitas.
Acredite!
E, se ainda houver tempo para repensar
Reveja minhas palavras em tua vida. 

Dezembro chegou"





Carlos Eduardo Leal é  psicanalista, escritor e artista plástico e sabe traduzir as emoções em poesia.