Que horas são?

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Playlist: Marcelo Camelo

































HÁ MUITAS FORMAS DE BENZER


"Benza a Deus, chegou dona Francisca faxineira! Entrou dizendo: “A bênção, meu filho, Deus te faça feliz”. Só ela para me explicar uma coisa que ultimamente anda acontecendo: para todo canto que eu olho vejo um coração... No pingo d’água do chuveiro, na pedra e na folha do jardim, em um papel caído no chão... Que tipo de recado será esse? “Não existe coincidência, existe providência!”, ela diz. E, para me apaziguar, me levou na casa de Fernando e Tantinha, raizeiros e benzedeiros de primeira. O coração em paz entende melhor o sentido das coisas.

Quando dei fé, Fernando, de sorriso largo, já começava a me benzer. No dicionário, benzer significa “fazer o sinal da cruz para consagrar ao divino” ou, ainda, “invocar a proteção do céu sobre pessoas ou coisas”. Fernando separa um copo com água e um raminho verde. Dentro do copo, um objeto sagrado para transformar a água comum em benta (no caso dele, uma cruz herdada de um mestre benzedor). Depois, pede a Deus para se tornar um instrumento da Sua paz. “Quem faz é Deus, o homem só copia...”, Francisca me fala ao pé do ouvido. Fernando molha o raminho na água fazendo com ele o sinal da cruz da minha testa ao peito e do meu ombro esquerdo ao direito, três vezes. Ao mesmo tempo, reza: “Com dois te puseram, com três eu tiro, com a Santíssima Trindade, com ramo verde e água fria, com um pai-nosso e ave-maria”. Então, me pede para jogar a água para trás e o ramo verde no chão, entregue à terra (estávamos numa área externa da casa). Põe a mão na minha cabeça e abençoa. Senti como se o meu coração descansasse no colo do mundo. “Para praticar o benzimento não é preciso dons especiais, só a vontade de ajudar o outro”, fala Tantinha. Isso é o que não falta a esse casal que criou o Ervanário São Francisco de Assis, em Belo Horizonte, Minas Gerais, auxiliando pessoas carentes com chás, tinturas e pomadas.

E vamos de prosa, pois até aprendi a benzer a casa. Com um copo d’água na mão, entramos em cada cômodo colocando dentro do copo um pedaço de carvão vegetal e rezando. Se o carvão afunda, quer dizer que o “clima” ali está pesado. Então, coloca-se outro até um deles flutuar, ou seja, o lugar ficar mais “leve”. Tantinha faz a varredura aprendida com a mãe usando alecrim: “Na Sexta-Feira Santa, ela varria o teto de cada cômodo, dos cantos para o centro. Depois, descia a vassoura do centro do teto até o chão e daí para fora da casa para tudo ficar mais puro e feliz”. Comprovei. Só de entrar na casa o meu coração se alargou.

Mas ainda não entendi: por que vejo tantos corações? “Porque mais vale um gosto do que um caminhão de abóboras!”, arrisca Francisquinha. Os benzedeiros têm outra opinião: “Ofício é benefício, ou seja, independentemente do seu ofício, faça sempre benefícios. Somos abençoados quando, amorosos, fazemos o bem. Esse é o recado”. Mas quem me manda esses recadinhos misteriosos? Francisca aponta o céu e diz: “Tem Gente lá em cima que aprecia por demais falar com o coração”."


Carlos Solano é arquiteto, escritor e colunista, na revista Bons Fluidos.



segunda-feira, 19 de maio de 2014




O amor acaba

Paulo Mendes Campos

Sim, o amor acaba. Onde? Quando? Como?

Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; e acaba também em cafés engordurados, diferentes dos parques dourados onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinza o es­carlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois de uma noite votada a uma última ale­gria, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois pol­vos de solidão; como se as mãos soubessem an­tes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg entre fri­sos de alumínio e monótonos espelhos paralelos; e no olhar do eterno cavaleiro errante que pas­sou pela pensão; às vezes acaba o amor nos bra­ços crucificados de Jesus, filho torturado e com­padecido de todas as mulheres; no elevador, mecanicamente, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro da casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode aca­bar; no telefone, onde tantas vezes o amor co­meça, o amor acaba; na compulsão da simplici­dade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por al­guns dias, mas não floresceu, abrindo parágra­fos de ódio inexplicável entre o pólen e o gine­ceu de duas flores; em apartamentos refrigera­dos, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na simples poeira que vertem os crepúsculos, ca­indo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor acaba; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, e o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fanta­sia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, na mesma boate, com o mesmo drinque; diante dos mesmos cisnes; e muitas ve­zes acaba em ouro e diamante, dispersado entre os astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris. Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que cobre o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simples­mente esquecido como um espelho de bolsa, que permanece reverberando sem razão, até que al­guém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter exis­tido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na vaidade; no álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer hora o amor acaba.



Publicado na revista Manchete em 16.05.1964.


(Li, no site do Instituto Moreira Salles)


domingo, 18 de maio de 2014






"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos." 


                               
                             (Henri Miller)



Uma tarde de outono, na Livraria Cultura, em São Paulo.





“Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. 
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido. 
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa de salvar-se.”


Almada Negreiros, início de A Invenção do Dia Claro (1922)