Que horas são?

quarta-feira, 15 de abril de 2015

                             




                    
                               


     


"Sur"

"Nenhum pesadelo hoje.
A folha do sono se espalhe e branca
faça a sequência de horas que você não saberá
porque estará dormindo e assim o balão
que segurava fugiu da sua mão e o último pensamento
foi ao chão com as dúvidas
que deixaram de brilhar seus diamantes inúteis.

Nenhum pesadelo hoje.
Seu sono seja um piano só de teclas brancas,
de notas brancas, todo branco,
de tal modo que não seja mais um piano,
será apenas um cachorro também ele dormindo manso
e nem vontade de saber o que seriam sonatas
ou sonetos ou coisa que o valha.

Nenhum pesadelo hoje. Nenhum.
Descanse. Esqueça. Desimagine.
Não existem estrelas, praças, fome,
estátuas de mármore, estamos felizes,
esqueça que estamos felizes, estamos
em Buenos Aires, esqueça que estamos
longe de casa, não temos casa.

Você é o amor. O amor precisa dormir
para estar moço no dia seguinte.
Por isso é preciso não pensar no dia seguinte.
Nenhum pesadelo hoje. Você é uma menina
e nem tinha um balão entre os dedos,
nenhum balão escapou dos seus dedos.
Estou aqui do seu lado, acordado.


Nenhum pesadelo. Nem sonhos bons.
Apenas a folha branca do sono perfeito
espalhando seu piano branco e perfeito
como o sono de um cachorro que não sabe
o que é o amor e ama. Esqueça o amor.
Você é o amor. Você não é mais uma mulher
e seus anéis, seus cabelos e seu homem.

Apenas durma. Descanse. Ninguém morreu
nunca em nenhum lugar e ninguém jamais
morrerá em lugar nenhum. Não estamos
em Buenos Aires, não estamos neste quarto
de hotel em Buenos Aires. Somos o balão
que escapou de sua mão e sem direção
flutuamos ignorantes disso porque dormimos.

Ou melhor, você dorme. Eu não.
Sou um homem que nunca se esquece
que é um homem e que tem medo. Mas
estou aqui do seu lado.
Sou um cão velando o sono de sua dona.
Sou um piano aceso toda a noite para fazer
mais cintilante o silêncio em torno de sua dona.

Mas você não deve saber de nada disso.
E viverá a perfeição de não acordar no meio
da noite. Não há cães, balões, pianos, esqueça.
A cidade escapou de seus dedos, descanse.
Com eles ficaram seus anéis e seus cabelos
estão lindos. Não há nenhuma hipótese
de pesadelo hoje."


"Sur" é um dos poemas de "Escuta", novo livro de Eucanaã Ferraz. 

"Escuta" será lançado no Rio de Janeiro no dia 16 de abril, às 19h, na Livraria da Travessa - Ipanema.