Que horas são?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015







Maria Teresa Horta
(Lisboa, n. 1937)
in "As Luzes de Leonor", D. Quixote, Lisboa, 2011



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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015







A NATUREZA E A JANELA


"Gosto de olhar para a
Natureza,
tudo parece impossível de ali estar
com a exatidão
da beleza ou da feiúra,
Não gosto de olhar para a
Natureza,
parece não haver esforço algum
para que tudo seja como é
Há esse Deus de que falam
as grandes religiões,
e há esses deuses de que falam
as pequenas esperanças
das transcendências menores,
E enquanto isso eu fico
na janela desse degredo vagabundo
a que me entreguei,
olhando prédios, carros e pessoas
com a convicção do acaso
e com a desconfiança
sobre uma Criação comovente
Um Deus, uns deuses,
uns caras assim, lá de cima,
fazendo tudo ser
fazendo tudo estar
fazendo tudo mudar
fazendo a história de tudo
se dialetizar,
e nos dando a impressão de
que temos alguma importância,
Esses sujeitos, sim, me trariam
alguma alegria e estupefação,
Mas não dão as caras nunca,
ficam por aí escondidos até
que a descrença chegue
e perca o valor
a extraordinária existência
etérea
sobre a qual nos acostumamos
a imaginar os grandes criadores
E dessa janela deixo escorregar
um pouco de whisky
para dentro desse corpo que vai
ficando velho,
E deixo o pensamento caminhar
com a velocidade dele mesmo,
com a agilidade
que hoje ainda tem,
mais lenta,
mas trazendo as cautelas
que o tempo me deu
Não lhe dou pressa,
o pensamento não carece
de correr,
E o whisky me traz
lentamente a impressão
de que ele é mais forte do que um deus,
de que ele vale mais do que todas as igrejas,
de que não é nocivo porque
vai matando o corpo
e destroçando a lucidez
Não tenho muito interesse em lucidez
e isso não me faz falta,
acostumei-me a realidades
paralelas
e nelas fiz meu ninho
de pássaro atormentado
e louco
O que me encanta nesses
tragos inúteis desses dias
inúteis
é a sensação de que posso pensar
como um deus
e fazer o mundo rodar
para onde eu queira,
sempre a paz e algum alento,
sempre longe desse meu desespero,
dessa ausência de que falava
Camile Claudel,
e que sempre a acompanhava,
“Il y a toujours quelque chose d'absent
qui me tourmente”
E assim vou indo,
até desaparecer toda minha humildade,
até brotar do chão minha presunção,
até que eu fique pujante,
até sentir que sou vigoroso
o suficiente para criar um mundo
desde o fundo
do fundo
da minha aflição
E depois me tornar mortal
quando o whisky irá embora,
quando a Natureza ficará órfã,
quando eu restaurarei a sobriedade
tão pretendida pelos de bom senso,
tão óbvia para os cuidadores da vida
Tão clara, tão clara
Mas aí, quando recupero os sentidos,
todos os sentidos,
e quando deixo de ser um desses deuses
fundamentais,
ganho novamente a condição humana,
que não sei de onde vem
e nem para onde vai,
E então o mundo todo fica mais triste
e meus olhos choram um pouco
e a poesia desaparece
E com esse mesmo rosto
de sempre,
quando somente as marcas do
tempo
me modificaram,
eu olho novamente pela minha janela
e me sinto a própria Natureza,
eu sinto que sou a substância nascida
para ser o que fui,
para ser o que sou,
a argila da indignação,
a recusa pedagógica do correto,
o ungido pelo óleo viscoso
da normalidade,
esse lugar de onde me afasto
com gestos suaves e delicados,
e tudo o mais que esperam de mim
E é nesse momento que fico contra todos
porque sou feito de estranhezas,
Mas prossigo anônimo
entre todos os adversários
que nada percebem,
Tenho os olhos cheios de sangue, 
o coração feito um tarol militar,
e o desejo de guerrear nas ruas
da minha cidade,
feito um jovem atrás de barricadas
se aventurando no caminho da morte,
mas sou pacífico, não faço mal a ninguém
É que uma estratégia para viver
talvez seja sempre necessária,
mesmo entre mortos imaginários,
para atingir uma felicidade
um tanto rara, quase única,
mas indispensável
a um espírito
irrequieto como bicho
enjaulado."






Pedro Moacyr Pérez da Silveira é professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Pelotas, RS.