Maria Teresa Horta (Lisboa, n. 1937) in "As Luzes de Leonor", D. Quixote, Lisboa, 2011 (para visualizar melhor, clique na imagem, com o lado direito do mouse e selecione "abrir imagem em uma nova guia")
quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
A NATUREZA E A JANELA "Gosto de olhar para a Natureza, tudo parece impossível de ali estar com a exatidão da beleza ou da feiúra, Não gosto de olhar para a Natureza, parece não haver esforço algum para que tudo seja como é Há esse Deus de que falam as grandes religiões, e há esses deuses de que falam as pequenas esperanças das transcendências menores, E enquanto isso eu fico na janela desse degredo vagabundo a que me entreguei, olhando prédios, carros e pessoas com a convicção do acaso e com a desconfiança sobre uma Criação comovente Um Deus, uns deuses, uns caras assim, lá de cima, fazendo tudo ser fazendo tudo estar fazendo tudo mudar fazendo a história de tudo se dialetizar, e nos dando a impressão de que temos alguma importância, Esses sujeitos, sim, me trariam alguma alegria e estupefação, Mas não dão as caras nunca, ficam por aí escondidos até que a descrença chegue e perca o valor a extraordinária existência etérea sobre a qual nos acostumamos a imaginar os grandes criadores E dessa janela deixo escorregar um pouco de whisky para dentro desse corpo que vai ficando velho, E deixo o pensamento caminhar com a velocidade dele mesmo, com a agilidade que hoje ainda tem, mais lenta, mas trazendo as cautelas que o tempo me deu Não lhe dou pressa, o pensamento não carece de correr, E o whisky me traz lentamente a impressão de que ele é mais forte do que um deus, de que ele vale mais do que todas as igrejas, de que não é nocivo porque vai matando o corpo e destroçando a lucidez Não tenho muito interesse em lucidez e isso não me faz falta, acostumei-me a realidades paralelas e nelas fiz meu ninho de pássaro atormentado e louco O que me encanta nesses tragos inúteis desses dias inúteis é a sensação de que posso pensar como um deus e fazer o mundo rodar para onde eu queira, sempre a paz e algum alento, sempre longe desse meu desespero, dessa ausência de que falava Camile Claudel, e que sempre a acompanhava, “Il y a toujours quelque chose d'absent qui me tourmente” E assim vou indo, até desaparecer toda minha humildade, até brotar do chão minha presunção, até que eu fique pujante, até sentir que sou vigoroso o suficiente para criar um mundo desde o fundo do fundo da minha aflição E depois me tornar mortal quando o whisky irá embora, quando a Natureza ficará órfã, quando eu restaurarei a sobriedade tão pretendida pelos de bom senso, tão óbvia para os cuidadores da vida Tão clara, tão clara Mas aí, quando recupero os sentidos, todos os sentidos, e quando deixo de ser um desses deuses fundamentais, ganho novamente a condição humana, que não sei de onde vem e nem para onde vai, E então o mundo todo fica mais triste e meus olhos choram um pouco e a poesia desaparece E com esse mesmo rosto de sempre, quando somente as marcas do tempo me modificaram, eu olho novamente pela minha janela e me sinto a própria Natureza, eu sinto que sou a substância nascida para ser o que fui, para ser o que sou, a argila da indignação, a recusa pedagógica do correto, o ungido pelo óleo viscoso da normalidade, esse lugar de onde me afasto com gestos suaves e delicados, e tudo o mais que esperam de mim E é nesse momento que fico contra todos porque sou feito de estranhezas, Mas prossigo anônimo entre todos os adversários que nada percebem, Tenho os olhos cheios de sangue, o coração feito um tarol militar, e o desejo de guerrear nas ruas da minha cidade, feito um jovem atrás de barricadas se aventurando no caminho da morte, mas sou pacífico, não faço mal a ninguém É que uma estratégia para viver talvez seja sempre necessária, mesmo entre mortos imaginários, para atingir uma felicidade um tanto rara, quase única, mas indispensável a um espírito irrequieto como bicho enjaulado."
Pedro Moacyr Pérez da Silveira é professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Pelotas, RS.