(o rio que eu vi...)
Arte poética
"Fitar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano ver um símbolo
Dos dias de um homem e de seus anos,
Transformar o ultraje desses anos
Em música, em rumor e em símbolo,
Na morte ver o sonho, ver no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
Contempla-nos do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável."
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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