DIA 289
"Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor suporta este frio
que arrepia os seixos mas dá impulso aos tordos, às narcejas e
ao passo ansioso dos caçadores. Ninguém se lembra da ansieda-
de dos amantes, daqueles que trocam o mundo por um gesto e
se dispõem a libertar o corpo na mais dura das prisões: a paixão.
Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor tem a profundida-
de das raízes da macieira, a cor e a doçura das maçãs, a plastici-
dade da nuvem, a paciência da água. Mas os amantes não vivem
numa casa branca cheia de toalhas brancas, cortinas brancas, ro-
sas brancas e brancas esperanças. O amor é rútilo e agita-se co-
mo um peixe que viajasse por dentro do corpo até atingir o cora-
ção, em festa, em êxtase, em antecipação aos céus negros e às
tempestades que podem desabar.
Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor requer para si to-
do o tempo do mundo, todos os frutos da ternura que as mãos
podem colher na árvore do corpo. Sagrado é esse amor em que
o espírito se faz carne, em que a carne se faz chama e em que a
chama se faz vida. Sagrada é a beleza desse pássaro sensível, le-
ve e misterioso, que descansa no orgulho dos amantes.
Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor empurra-me para
um círculo que é o centro do mundo, que é o centro da vida, pa-
ra que seja feliz nesse espaço e neste tempo, o tempo de saber
que nada tem um preço mais caro que o amor, mas que todos,
até os indigentes, o podem suportar.
Vem a chuva, não vem a chuva, e o meu amor será um cântico
mais a juntar aos cânticos entoados pelos mais felizes corações
do mundo."
JOAQUIM PESSOA in 'ANO COMUM'
(Introd. de Robert Simon; Posf. de Teresa Sá Couto)
Litexa Editora, 2011.
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