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quinta-feira, 12 de julho de 2012





Artigo publicado na Revista Metáfora, edição nº 08, páginas 24, 25 e 26.




FOME DE POESIA


Aos 47 anos de carreira e no álbum 50º, Bethânia grava, pela primeira vez, poema de sua autoria


André Bernardo



"Ainda hoje, a cantora Maria Bethânia cumpre o intrigante ritual de queimar tudo o que escreve. Esse ato, diz, é ao mesmo tempo, libertário e purificador. “Não sou de mostrar o que escrevo para os outros. Escrevo para mim mesma”, justifica. Ano passado, Bethânia abriu uma honrosa exceção para Carta de Amor. Em vez de queimar o texto, como já fez com tantos outros, resolveu publicá-lo em seu novo CD. E mais: foi no poema que buscou inspiração para batizar o 50º álbum de sua carreira, Oásis de Bethânia, lançado pela gravadora Biscoito Fino. “Desta vez, senti necessidade de dizer aquelas palavras”, afirma. Há quem garanta que o poema Carta de amor seja uma resposta tardia a todos que, no ano passado, criticaram duramente Bethânia por causa do blog O mundo precisa de poesia. Na ocasião, os idealizadores do projeto, o antropólogo Hermano Vianna e o cineasta Andrucha Waddington, receberam autorização do Ministério da Cultura para captar R$ 1,3 milhão. “Infelizmente, houve um desagravo tão pesado e soturno que Hermano cancelou o projeto”, lamenta.

O cancelamento do blog não impediu Bethânia de continuar fazendo o que mais gosta: recitar poesia. No segundo semestre, paralelamente à turnê de “Oásis de Bethânia”, ela pretende retomar o recital “Bethânia e as palavras”, onde intercala música e poesia, duas de suas paixões. “A arte só existe porque a vida não basta”, reitera, citando Ferreira Gullar. Outro de seus poetas favoritos, o português Fernando Pessoa, também marca presença no álbum. É dele o poema Não
sei quantas almas tenho, escrito sob o heterônimo de Bernardo Soares, que pontua a canção Calmaria, composta pelo sobrinho, Jota Velloso. “Ah, o Pessoa é o poeta da minha vida”, derrama-se a cantora que, em 2010, ganhou a medalha da Ordem do Desassossego, em reconhecimento à divulgação da obra do poeta português.

Poesia cantada. Pela primeira vez em 47 anos de carreira, Bethânia gravou um poema de sua autoria. Ela explica o motivo:

Desde moça, sempre gostei muito de escrever. Mas sou do tipo que escreve para mim mesma. Com exceção do meu analista e de uns poucos amigos, como Fauzi (Arap) e Elias (Andreato), não gosto de mostrar o que escrevo para os outros. O poeta Waly Salomão é um dos que sempre se interessaram em ler o que eu escrevia. «Soube que você passou o final de semana escrevendo, é verdade?”, vivia perguntando. “Pois é, escrevi”. “Vou aí”, avisava. “Não venha porque já queimei…” (risos) Ano passado, porém, escrevi “Carta de Amor” e gostei. Precisava escrever aquelas palavras. E mais: precisava dizer aquelas palavras. E disse. Não sei se é certo ou errado, bonito ou feio, mas disse…

Se  “Carta de Amor” seria uma resposta para quem a criticou no ano passado por causa do blog “O mundo precisa de poesia”?, ela comenta:

Não escrevo para quem acho que não pode me compreender. Se dissesse que escrevi “Carta de Amor” pensando nisso ou naquilo, ficaria pequeno. Escrevi “Carta de Amor” para me livrar de dores, mágoas, angústias… Quem quiser vestir a carapuça que vista…

O surgimento da ideia de participar de um blog sobre poesia?

O blog foi uma ideia do Hermano (Vianna) e do Andrucha (Waddington), amigos amados. Um dia, eles me viram recitando poesia na Casa do Saber (RJ) e me convidaram para participar de um projeto que já existia. Fiquei honradíssima com o convite. Mas aí teve aquele desagravo tão pesado e soturno que o Hermano resolveu cancelar o projeto. Espero que, um dia, ele possa retomá-lo. Seria bom se a poesia pudesse, através da força da internet, chegar às pessoas em toda hora e em todo lugar. O pessoal se aproveitou da polêmica para me bater. E bateram muito. Mas, como diz o Chico, “eu não quebro porque sou macia”…

Sobre intenções de que um dia ela possa enveredar pela literatura, como Chico Buarque ou Caetano Veloso:

(risos) Não pretendo virar escritora. Nem quero. Sou apenas uma cantora popular que ama o seu ofício. Já temos excelentes escritores no Brasil. Escrevo apenas para me resguardar da superexposição do palco. Adoro escrever. Pode até ser que, no futuro, eu venha a escrever outros textos, não sei. Como também não sei se vou querer publicá-los…

Bethânia recitou, em alguns de seus shows, poetas como Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector. Seus escritores prediletos:

Bem, Fernando Pessoa é o poeta da minha vida. De todos, é de quem eu mais gosto. Mas também gosto de Sá de Miranda, (António) Botto, Sophia (de Mello Breyner)… No Brasil, gosto de Clarice (Lispector), Ferreira (Gullar) e Nélida (Piñon)… Ano passado, Nélida me escreveu uma carta linda, onde dizia: «De uma coisa você está proibida: não derrame uma só lágrima… O Brasil não merece!» Sou muito grata a Nélida. São muitos os escritores brasileiros que admiro. Fica até difícil escolher um ou outro. Não quero cometer a injustiça de esquecer ninguém porque não quero ninguém zangado comigo… (risos)

Desde 2009, a cantora apresenta o espetáculo “Bethânia e As Palavras”, onde intercala música e poesia. Eis o pensamento da cantora sobre a necessidade de poesia no Brasil.

Há uma fome de poesia no Brasil que você nem imagina… E não é somente poesia, é literatura de modo geral. Sempre que há uma bienal infantil, por exemplo, você vê a loucura que é. A fome de cultura é cada vez maior. Eu diria até que cresce na mesma velocidade que a estupidez do mundo. Infelizmente, a estupidez faz mais barulho… O mundo está grosseiro, sem classe, sem delicadeza. Ninguém mais quer prestar atenção aos detalhes… O som da poesia, como diria Baudelaire, se não me engano, é o de uma pétala caindo no abismo. Infelizmente, quando passa, a cavalaria abafa o som da poesia. Mas a fome de poesia existe. E, acredite, está cada vez maior…"




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