(poesia em flor...)
A POESIA COMO PROVA
"Janto em Teresina com o poeta português Ivo Machado. Ele me mostra um de seus incríveis cadernos de anotações. Escreve seus poemas no interior de quadrados imaginários que tomam só a metade de cada página. E com uma letra minúscula, "para que ninguém os consiga ler". Escreve para si e para ninguém mais. Escreve em segredo, transformando seus poemas em bordados.
Assombro-me com o caderno. É nesses pequenos vícios que se vislumbra a alma de um escritor. O afetuoso Ivo defende sua estratégia minimalista. A poesia é um bem muito precioso, cada vez mais precioso. Devemos protegê-la da fúria do presente. Lembra Ivo, então, de uma frase do Luis Cardoza y Aragon, o poeta guatemalteco falecido em 1992: "A poesia é a única prova concreta da existência do homem".
Envolta na voz de radialista de Ivo Cardoso, a frase fica a me martelar. Toca em um ponto, para mim, crucial: o que liga a literatura à vida. Nas horas mais difíceis, a literatura sempre me salva. Hoje mesmo, em um longo vôo entre Teresina e Recife, com uma estranha conexão em Brasilia, reli _ quase todo _ "O diário da queda", o lindo romance de Michel Laub. Uma gripe me rondava. Ando com problemas de família. Tenho viajado sem parar e isso, se me entusiasma, me cansa também. Em meio à exaustão, o livro de Michel _ como alguém que me amparasse depois de um tombo em
plena rua _ me deu a mão e me ergueu. Obrigado por isso, Michel.
Nas horas mais absurdas, a literatura _ e já não sei mais separar literatura e poesia _ se torna a única prova de que existir ainda é possível. De que devemos persistir nos caminhos que escolhemos. Devemos apostar no inegociável. Repito a frase de Aragon como se ela me pertencesse _ e de fato já pertence. A poesia é a única prova concreta da existência do homem. Sim, a poesia, que nada deve a ninguém. A ciência tem suas teses e suas demonstrações. A religião, seus dogmas. A filosofia se ampara na armadura dos conceitos. Só a poesia não precisa de artefato algum para afirmar nossa existência. Ela basta, de fato, como prova de que estamos vivos.
Encontro em meu caderno de notas o endereço de Ivo Machado, que ele mesmo anotou com sua letra de calígrafo. O endereço, seguido de email e telefone, ocupa o centro de uma página, como se fosse um poema.Talvez seja um poema. O que é um poema? Em nossa mesa de jantar piauiense, cercados de amigos, havia algo de poético a nos rondar. Algo que afirmava nossa presença. Algo que, sem precisar de provas, provava que estávamos ali. E intensamente vivos."
é jornalista e escritor, colunista do suplemento Prosa & Verso, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), entre outros.
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