"— Senhor?
— Pois não?
— Adão está retornando Sua ligação. Ele está na linha sete.
— Pode passar.
— Sim, Senhor. Só um minuto.
— Alô?
— Oi, Adão, tudo bem?
— Tudo e o Senhor?
— Adão, que história é essa de que você atacou as girafas?
— Ah, o Senhor ficou sabendo?
— É evidente que Eu fiquei sabendo. O que aconteceu?
— Bem, na verdade, foram elas que começaram. Faz tempo que elas estão espalhando por aí que o Senhor não existe. Que o Senhor é uma invenção minha, e que os outros animais não deveriam mais acreditar no Senhor. Aí começaram a espalhar umas folhas de bananeira com piadas sobre isso.
— Piada?
— Isso. Eram desenhos insinuando que eu era o dono do Paraíso e havia inventado Sua existência. Outros mostravam o Senhor com chicotes e porretes, obrigando os animais a acreditarem na Sua palavra. Aí eu fui ali até onde as girafas ficam... Perto do lago, sabe?
— Sei.
— Fui até lá e arranquei todas as folhas das bananeiras que tem ali perto. Assim elas não fariam mais desenho nenhum. E expliquei que se elas continuassem com isso, eu iria voltar ali e faria muito mais que apenas arrancar as folhas das bananeiras.
— Sei.
— Mas no dia seguinte elas espalharam outros desenhos em folhas de bananeira. Não sei onde arrumaram as folhas.
— E o que tinha nos novos desenhos?
— Eu. Eu socando os outros animais e embaixo disso, a frase “Espalhando a palavra do Senhor”.
— Certo. E depois disso?
— Mandei pararem com isso. Acredita que no mesmo dia começaram a espalhar novos desenhos? Mostravam uma girafa amordaçada e a frase “não conseguimos dizem amém para certas coisas”. Aí eu voltei até o lago.
— O que você falou?
— Não falei nada. Assim que encontrei uma delas, voei direto no pescoço. Quando eu a derrubei, as outras apareceram e eu dei socos e pontapés em todas elas. Acho que aprenderam a lição.
— Adão... Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você é idiota?
— Oi?
— É uma pergunta simples. Você é idiota?
— Bem...
— Se você é incapaz de responder se é idiota ou não, é porque a pergunta já foi respondida. Vou tentar uma última vez. Você é idiota?
— Não. Não sou.
— Então por que você está agindo como se fosse?
— Como assim?
— Quem lhe deu o direito de agredir as girafas?
— Bem, elas estavam falando mal do Senhor. Falando que o Senhor não existe.
— E daí?
— E daí que é errado.
— Ah, é? Por quê?
— Bem... Porque o Senhor existe. Tanto que está aqui falando comigo.
— Sei. E você acha que isso lhe dá o direito de agredir um animal que não acredita em Mim?
— Bem...
— Você já parou para pensar que qualquer animal do Paraíso tem o direito de não acreditar em Mim?
— Mas foi o Senhor quem criou o Paraíso. E se foi o Senhor quem criou o Paraíso, foi o Senhor quem criou os animais. Então eles são obrigados a acreditar no Senhor.
— Obrigados?
— Isso.
— Adão, você acha que Eu criei o Paraíso porque você acredita em Mim. Se outro animal não acredita em Mim, é lógico que ele vai acreditar que o Paraíso foi criado de outra forma. Ele tem esse direito. Ele pode acreditar no que quiser. Aliás, ele pode até acreditar em nada, se preferir.
— Como assim, acreditar em nada?
— Ele pode acreditar que não foi criado por ninguém e que apenas apareceu aqui. E que o Paraíso sempre existiu, e que Eu não tenho nada a ver com isso, porque Eu não existo. É um direito dele.
— Mas é errado. O Senhor existe. As girafas...
— Você já parou para pensar que Eu posso existir para você ao mesmo tempo em que posso não existir para as girafas? O direito que elas têm de acreditar no que quiserem é exatamente igual ao seu de acreditar em Mim. E sabe o que você e as girafas devem fazer a respeito disso?
— O quê?
— Nada. Absolutamente nada. Vocês devem apenas continuar convivendo, cada um acreditando no que quiser, mas sem interferir com a crença do outro.
— Eu não posso conviver com um animal que não acredita no Senhor. Isso é errado.
— Adão, se você simplesmente se recusa a conviver com um animal que não tem fé em mim, Eu prefiro acreditar de uma vez por todas que as girafas tem razão. Talvez seja mais fácil Eu acreditar que não existo e que nós nunca nem conversamos, ao invés de aceitar que você é radical a este ponto. Prefiro acreditar que você é esquizofrênico e está sentado na sua caverna falando sozinho no escuro feito um louco, e pensando em maneiras de atacar as girafas.
— Mas as girafas também não deviam fazer aqueles desenhos.
— Adão... Há quanto tempo você Me conhece?
— Bastante.
— Você realmente acha que Eu me importo com isso?
— Bem, é porque os desenhos...
— Adão, Eu fiz uma pergunta. Você acha que Eu me importo com um desenho?
— Não. Acho que não.
— Certo. Sabe por quê? Porque Eu estou ocupado demais me importando com as escolhas que vocês fazem todos os dias. Quero ver vocês felizes com vocês mesmos, com suas vidas, com seus valores. Quero ver vocês aprendendo e crescendo. Isso é importante para mim. Não um desenho feito numa folha de bananeira.
— Entendi.
— Adão, você acredita em Mim? Acredita que Eu existo?
— Lógico.
— Por acaso os desenhos das girafas fazem com que você acredite menos em Mim?
— Não.
— Então, pronto. Além disso, socar as girafas não vai mudar a forma que elas pensam. Vai apenas fazer com que elas sintam raiva de você. E, como resposta, você vai sentir raiva delas. E este ódio vai apenas aumentar.
— Entendi.
— E vai chegar um momento que vocês vão se odiar sem ao menos lembrar o motivo, porque logo essa raiva se tornará maior do que qualquer crença que vocês tiveram um dia. E aí finalmente você e as girafas vão passar a acreditar na mesma coisa: que o ódio é a resposta.
— Bom, desculpe. Mas eu fiz isso em Seu nome, porque pensei que...
— Meu nome?
— Sim.
— Em Meu nome? Eu pedi para você ir lá e socar as girafas? Eu pedi para você arrancar as folhas de bananeiras, ou para que você deixasse as girafas aterrorizadas?
— Não.
— Então, não diga que foi no Meu nome. Se você quiser ir lá e socar as girafas, faça isso porque você quis. Mas faça isso por você. Nunca mais diga que fez algo assim em Meu nome.
— Mas é porque as girafas...
— Adão, você lembra o que Eu disse a você sobre os animais do Paraíso, numa das primeiras vezes que conversamos?
— Que eu devia amar todos os animais.
— Todos os animais ou todos os animais que acreditam em Mim?
— Todos os animais.
— Exato. A palavra chave é amor, Adão. O amor precisa ser maior que tudo. Maior que você, que as girafas, até mesmo maior que Eu. O amor precisa ser maior que qualquer crença ou forma de pensamento. Além disso, o amor tem uma coisa que as crenças não têm.
— Qual?
— Você pode não conseguir provar sua crença, mas consegue provar que o amor existe. Não em um momento ou outro, mas em todos os dias, com respeito, tolerância e compaixão. Independente de qual seja a sua fé. Porque todas as crenças são apenas expressões diferentes do mesmo amor. São caminhos diferentes que levam ao mesmo amor. Por isso não importa o nome da fé, e sim o amor que ela ensina.
— E aqueles que não acreditam em nada?
— Eles não precisam acreditar nesta ou naquela fé para acreditarem no amor, e saberem que ele é necessário.
— Não sei se entendi.
— Você ainda vai entender. Todos vocês. Vai demorar, mas vocês ainda vão entender.
— Sim, Senhor.
— Amanhã você vai pedir desculpas para as girafas.
— Certo. E vou falar que o Senhor perdoou o fato de que elas...
— Não, Adão. Você vai apenas pedir desculpas. E não vai falar uma palavra sobre Mim. Eu não perdoei as girafas porque elas não erraram Comigo. Quem errou foi você. Você errou com elas e errou Comigo. E você vai remediar isso.
— Certo.
— Não faça mais isso. Por favor.
— Sim.
— Até logo.
Naquela noite, Deus desceu até o Paraíso e caminhou pelos gramados. Adão e os outros animais estavam dormindo e não perceberam sua presença — caso estivessem acordados, não teriam reparado que cada animal enxergava Deus de uma forma diferente. Ele era o Deus de Adão quando passou perto da caverna de Adão, era o Deus dos macacos quando passou perto da floresta, era o Deus dos leões quando passou pelas savanas. E era o Deus das girafas quando se aproximou dos lagos, ajoelhou-se ao lado delas e curou seus ferimentos.
Mas nem todos os animais estavam dormindo. Logo, a serpente estava ao Seu lado. Esperou Deus terminar de cuidar dos ferimentos das girafas antes de falar.
— Você sabe que eu não tenho nada a ver com isso, certo?
— Eu sei.
— E você sabe que isso ainda vai dar muito problema? Por séculos e mais séculos.
Deus respirou fundo.
— Eu sei.
— Escute, quer beber alguma coisa e conversar? Eu tenho uma garrafa de...
— Não. Ainda preciso recolocar as folhas das bananeiras. Mas acho que depois quero ficar um pouco sozinho.
Deus disse isso recolocando as primeiras folhas nas bananeiras. Em todas elas, escrevia a frase “Eu Sou Charlie”. A serpente observou por alguns instantes antes de falar novamente.
— Olhe, pode subir. Vai descansar. Eu arrumo as árvores.
— Mesmo?
— Sim, fique tranquilo, eu resolvo isso. Pode subir.
— Certo. Obrigado.
Assim que Deus desapareceu, a serpente começou a recolocar as folhas. Estava na terceira folha quando sentiu o vento. E, antes da quinta folha, uma enorme tempestade começou a desabar sobre o Paraíso, fazendo todos os animais se aconchegarem em suas tocas, menos a serpente, que olhou para o céu, assustada.
Nunca havia visto Deus chorar tanto."
Rob Gordon
Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.