Assisti este filme tantas vezes quantas me encantei. Uma história de amor, de vida e suas (im)possibilidades. E leio as palavras do Pedro Moacyr como uma tradução do que sempre vi, na tela, mas não soube escrever.
"Mas quem deita a vida como se sobre um tapete para ver-lhe todos os pedaços em que se constituiu não verá mais do que miseráveis porções confusas, estilhaços fragmentários de uns nacos desorganizados, algumas frações caóticas de um imenso e cadenciado andamento. Irá procurar na escuridão das noites alguma claridade impossível; irá ofuscar-se na luz dos dias atrás de uma dobra que, por pejo, não se mostra jamais; irá rastejar saudoso, perseguindo o rosicler da aurora de um dia perdido; irá ainda vagar como um monge pelos sombrios corredores de seu mosteiro a procura do deus que sempre quis ver. Quem deita a vida sobre um tapete tem lembranças imprecisas, e parecerá um mercador de si próprio, oferecendo-se a vida estirada para um bom inventário, e quererá comprar essa vida para ver se encontra os fatos, aqueles fatos, outros fatos, suas coisas, seus detalhes, as rugas esquecidas do viver que se foram com o tempo, e venderá a si próprio a sua vida para tê-la novamente, não para vivê-la, que isso impossível é ao tempo cartesiano, mas para lembrá-la, remontá-la, sofrer e alegrar-se de novo pelo que, agora, está certo de que não mais viverá. E vasculhará suas taças atrás de água e suas baixelas atrás de comida; ele vai querer um quarto, um porta-retrato, um caderno inútil, um cheiro, uma cama, um silêncio, e prosseguirá com os olhos fixos e nostálgicos atrás do que não foi e poderia ter sido, e do que foi e poderia não ter sido, e conhecerá sua imprevisibilidade e a fortuidade dos acontecimentos. E tanto caçará suas coisas todas, tanto esquadrinhará o seu tapete, tanto cultivará a esperança, que em sua investigação sentimental perceberá ser o amor o único sentimento a pôr-se no verdadeiro relicário do seu coração; e que todo o resto se prestou apenas para formar, feito um lúdico quebra-cabeça, a integralidade do que viveu, mas a importância desse resto é como a das paredes em relação ao teto das casas: obrigatórias, porém secundárias. E esse amor ele talvez nunca encontre. Pode tê-lo apenas imaginado, concebido em delírio, fomentado por um desatino de paixão não reconhecida. Esse amor pode ter sido apenas seu, também. Nunca se deu a mostrar, nunca saiu pela boca ou verteu-se pelo sexo. Mas esse amor pode também ter existido e sido terrivelmente único, irrepetível, e não ter sido vivido. Esse amor pode agora já estar depositado sobre o tapete de suas memórias, e então ele lacrimejará porque esse amor terá sido daqueles que não foi e poderia ter sido. E ele tentará, afrouxado pela tristeza impotente, retesar um pouco os músculos que já não precisam mais ser fortes para abraçar o seu amor, o amor que nunca foi abraçado mas que deveria ter sido. Novamente pensará naquele par; se homem, naquela mulher; se mulher, naquele homem, e recuperará o desejo, e reporá na pele a ardência dos amantes, e enfeitiçará seu pensamento das loucuras de quem ama e quer, de quem deseja e adora, de quem não consegue imaginar outro par igual, tão sensível, tão emocional, tão querido e tão infinitamente sonhado que por ele daria a vida, essa mesma vida que está a pôr sobre seu tapete imaginário. Queria não ter agora vontade de voltar porque queria àquele tempo ter ido, junto ficado, ao lado permanecido, ao lado vivido.
Então este que vemos pôr a vida sobre tapete recusa - num tempo anterior e inicial - a ideia do tapete, a vontade de tolos arrolamentos, os desperdícios de chances, e vê a vida exatamente enquanto ela passa, e evita um futuro onde precise acender faróis na popa de sua embarcação, observando o passado sem conseguir remontá-lo à custa de seus arrependimentos. E esse homem que evitou os tapetes da imaginação será um amante prático e pouco reflexivo, mas viverá seu amor, e saberá que o homem que estendia tapetes era pensativo demais e perdera seu grande amor entre os anos enevoados que passaram.
Surgirá assim um terceiro homem, que é os outros dois, pois os três são um e um é os três, e fará a pergunta: o que se leva dessa vida e o que nela se deixa que frutifique? E não saberá responder, ficará olhando um céu desabitado e de raro auxílio, olhará depois o chão em que pisa, e passará dias, meses, anos, consumirá talvez sua existência a pensar sobre a melhor resposta, e a vida passará.
Mas são três homens, mesmo que um só seja. Todos têm suas razões, e combinaram, por pudor moral, não julgarem um ao outro, mesmo que a cabeça de todos, que é uma cabeça só, viva aflita pela dúvida e tenha vontade de amar, mas amar de adoração."
Pedro Moacyr Pérez da Silveira é professor de Filosofia do Direito, na Universidade Federal de Pelotas -RS.
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