Sinto uma tristeza infinita quando penso sobre este assunto. Havia um tempo em que os relacionamentos tinham início, meio e, eventualmente, fim. E o fim era decretado quando esgotadas todas as possibilidades, ditas todas as palavras, podíamos, na maioria das vezes, elaborar a perda e, refeitos, seguir em frente. Há algum tempo, as pessoas foram perdendo a capacidade de cultivar as relações, e o mais novo e mais fácil, substitui, rapidamente, a relação anterior. Também a coragem perdeu-se, no caminho. Coragem para enfrentar os obstáculos, coragem para ficar, coragem para ir embora, com a mesma dignidade que chegou.
E a infelicidade, fruto da nossa incapacidade de assumir o que queremos ou quem desejamos que esteja ao nosso lado, pauta a vida que escolhemos viver.
"A infelicidade é uma questão de prefixo.", escreveu, sabiamente, Guimarães Rosa.
INFIÉIS DA PRÓPRIA VIDA"A infelicidade é uma questão de prefixo.", escreveu, sabiamente, Guimarães Rosa.
"Nossa vida está perdendo consistência. Espessura. Segurança. Estamos mais sujeitos a mudar do que a insistir.
Estamos mais sujeitos a nos separar do que a permanecer casados.
Estamos mais sujeitos a ir embora do que a voltar para casa.
O mundo está tomado de mutantes, zeligs, camaleões, transformers.
Se algo incomoda, se algo atrapalha, o botão Desapego é rapidamente acionado.
Como não pretendemos sofrer, caminhamos para a total insensibilidade. Deixa-se o começo por outro começo. Não há mais meio ou fim, o que vigora é a desistência.
Substituímos a responsabilidade pela ideia de liberdade.
Experimentar é a lei – fazer patrimônio e futuro não tem sentido.
Anteriormente, nos dedicávamos à família. Agora, nossa obsessão é o prazer pessoal. Danem-se as complicações.
A aparente leveza se assemelha a desenraizamento.
Buscamos chegar logo, não olhar a paisagem. A velocidade é o que nos provoca. Buscamos desembarcar logo num novo destino, não nos vale a estrada. A viagem deve ser curta e indolor, jamais reflexiva e longa.
Não estou sendo dramático. Na infância, tínhamos três canais de tevê. Hoje, são mais de 300. A variedade nos conduz a não nos fixarmos em nada durante grande tempo.
Ter um romance longo é quase uma insanidade, assim como ler um livro de 400 páginas ou assistir a um filme de três horas.
Não oferecemos chance para permanência, para a rotina, para a confirmação das expectativas.
Não toleramos o desgaste, o tentar o possível antes de se despedir. Sacrifício e renúncia são expressões banidas do vocabulário, significam burrice. “Perder tempo com alguém, com tanta gente interessante por aí?” é o que nos dizem.
O oi já é um convite, o tchau já é um adeus, não existe relacionamento seguro e firme que suporte a tempestade de contradições.
São muitos apelos para biografias imaginárias. São muitas opções de ser diferente, que nem descobrimos quem somos.
É sempre alguém nos chamando no Facebook ou nas redes sociais com uma história incrível, extraordinária, afrodisíaca, que é um crime não provar.
É sempre alguém oferecendo conselhos, dicas, sugestões.
Repare. O mundo virou sábio de repente: todos têm soluções, ninguém mais convive com seus problemas.
Não me refiro à infidelidade amorosa, mas ao quanto somos infiéis com o nosso passado.
Não é trocar de parceiro ou parceira, mas trocar de tudo: largar emprego, cidade, amigos, esportes, manias.
Troca-se de mentalidade mais do que de opinião.
E é tão fácil descartar, difícil é refinar a própria vida.
Mas se você concluiu a leitura desta crônica, ainda há esperança.
Esperança de não virar a página por um momento."
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 20/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17528
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