KREIDIMANIA
"Amigos,
sempre entendi Paul Gauguin, que saiu à francesa da efervescente Paris de seu tempo para se isolar no Taiti; Rimbaud, que chutou o balde da poesia antes dos vinte anos e se lançou numa vida aventuresca e solitária pela África; ou Kafka, que escreveu: “Se quiser lutar contra o mundo, comece apartando-se dele”. Entendo Raduam Nassar, que trocou a criação literária pela de galinhas, e Elomar, que não parece trocar por cantorias a sua criação de bodes lá nos longes do Rio Gavião. Todos fizeram uma grande arte e, durante ou depois, deram O Fora, assim, com maiúsculas. Não cheguei a fazer nem uma coisa nem outra, mas entendo todos eles. Minha arte não poderá redimir o acanhado fora que eu dei. Vivendo na “polinésia” do poeta Pedro Vergara, Pelotas, mais precisa ou imprecisamente, na cidade imaginária de Satolep, dedicado à criação de um dálmata engraçado, tornei-me apenas um desconhecido em toda parte. Exceto em Pelotas mesmo, onde sou quase uma celebridade. “Fala Kleiton Rodrigues!”, sempre grita para mim um flanelinha. Outro dia viajei de Porto Alegre para Pelotas com minha mãe e ela esqueceu no ônibus uma sacola. Liguei pra rodoviária e pedi para falar com o fiscal que minha família conhece há muitos anos, desde antes de meu irmão mais velho, Kléber, nascer, e que viajara conosco naquele dia “Oi, amigo, é o Vitor Ramil”, falei quando ele veio ao telefone. “Quem?” “O Vitor Ramil”, repeti. “Não conheço”, ele disse, secamente. Insisti: “Filho da Dona Dalva Ramil, Ra-mil, lá de Jaguarão, irmã da Dária e da Diva”. Ele foi taxativo: “Não conheço”. “Filho do Kleber Ramil, irmão do Dr. Kléber Antônio, da Branca, da Kátia, as gurias da Dona Dalva, lembra?, da dupla Kleiton e Kledir...?” E ele, já sem paciência: “Não, não conheço”. Desliguei o telefone e me toquei pra rodoviária. Quando fiquei frente a frente com o sujeito e disse que tinha ligado há pouco, ele se saiu com essa: “Pô, Kreidi, se tu me dissesse que era tu...” Na rua, seguidamente passam por mim e chamam: “Kleitokledir!” Abano sempre. Até autógrafo já dei: “um abraço, Kleiton” ou “Kledir”, dependendo do freguês. Raramente escapo do campo gravitacional dos meus irmãos. Mas tem um tipo que faz uma associação mais rara: “Vitor Ramalho, nosso cantor!” Certa ocasião, o gerente de um posto de gasolina, que a cada vez que eu aparecia para abastecer o carro me honrava com um título maior, “Fala, meu patrão!”, “Fala, meu diretor!”, “Fala, meu presidente!”, estava mais empolgado do que de costume (talvez porque eu estivesse com mulher e filhos no carro), então me olhou e disse: “O maior cantor do...” E parou. Deve ter pensado: “Do país não é, vai ficar ridículo se eu disser; do Rio Grande do Sul já seria demais; se eu disser ‘de Pelotas’ vai parecer pouco e periga ele não abastecer mais aqui...” Fizemos um silêncio abissal dentro do carro, movidos pelo interesse de não perder o que ele estava prestes a dizer. “...da Metade Sul!”, saiu finalmente. O aposto me persegue até hoje na intimidade do lar: “o maior cantor da Metade Sul”. Eu devia aparecer mais na televisão, em vez de fugir de tudo que é programa. Um dia desses, caminhava na rua, a uma quadra de casa, quando uma moto parou ao meu lado, no meio-fio. O motoqueiro, ainda de capacete, desceu e veio na minha direção. Pensei: “Morri”. Ele me fez parar, tirou o capacete e perguntou: “Tu morou no Rio um tempo, né?, toca violão, mano dos Kleiton... Legal. Te vi no canal tal essa semana, repete a toda hora. Prazer.” Então eu me lembrei que tinha dado uma entrevista num canal local, desses que a gente acha que ninguém assiste.Pois não é bem assim. Tem gente que assiste aos canais que ninguém assiste. Mas não são minhas esporádicas aparições na televisão as responsáveis pela kreidimania que me assola em Pelotas. São eles: os meus irmãos. Ninguém tem dúvida de que eu sou um kreidi. E isso não é do "Deu pra ti" pra cá, é coisa que vem lá da minha infância. Mesmo em casa, antes de começarem a ganhar a rua, eles já eram populares. A soma dos dois sempre gerou muita atração. No sistema solar familiar, eles eram o sol. De tanto girar em torno deles, comecei a compor, a cantar, a tocar, a escrever. Eles me ensinaram também a atrair, mas, em minha órbita de caçula e sexto filho, adquiri antes o gosto pelas distâncias e solidões, uma condição que favorece o hábito da observação. Nosso pai era introspectivo e emotivo, a mãe era enérgica e criativa. Todos os meus irmãos e irmãs cantavam e tocavam um instrumento. Kleiton e Kledir, pela proximidade de idade e de interesses, formavam uma dupla antes mesmo de ter consciência disso. O Kleiton, especialmente, aglutinava os irmãos, pois, beatlemaníaco, era um aficionado dos vocais num ambiente em que havia vozes de sobra. Quando nos juntávamos para tocar e cantar, ele se punha a distribuir as vozes e centralizar as ações. Os Ramil soavam bem. Com meu pai conheci velhos tangos que o faziam chorar antes mesmo que atingisse o refrão; com minha mãe, valsas do fundo baú, voa, minha linda borboleta, voa laraiá, laraiá, e coisas de Francisco Alves ou Vicente Celestino que minha avó já gostava. “Aos pés da Santa Cruz, você se ajoelhou...”, cantava o Kléber, o primeiro de nós a compor e a se apresentar em público. “Kommt ein vogel geflogen...”, cantavam a Branca e a Kátia, a duas vozes, afinadíssimas. Kleiton e Kledir passavam das maravilhas de Barbosa Lessa para as de Noel Rosa. Eu, depois de estacionar meus carrinhos Matchbox, soltava lá minhas notas, mas mais observava e aprendia do que participava. Segurar o choro quando a temperatura subia e meus pais afastavam o tapete da sala e dançavam tango era um esforço recorrente. Música, emoção e afetividade tornaram-se, naquele ambiente, uma coisa só. Se eu era afeito à minha órbita distante, também o era ao coração do sistema de que fazia parte. Assim me acostumei a ler ou a criar em meio ao burburinho, aquecido pelas pessoas próximas ao mesmo tempo em que me entregava aos devaneios solitários. Por isso, recentemente, não demorou muito para que o álbum que eu planejara gravar solo,com canções que ilustrassem o repertório do meu songbook, se transformasse num disco cheio de gente. Lá estava eu, em casa outra vez, tão longe e tão perto de todos, fazendo a minha parte, mas ainda observando e aprendendo mais do que qualquer outra coisa. O repertório de trinta de duas canções começava no sem-tempo (ou seria ‘puro tempo’?) de "Foi no mês que vem" e terminava num regresso ao tempo de Satolep. Lá estavam de novo meus irmãos, Kleiton e Kledir, exercendo seu magnetismo. Convidei-os para cantar comigo "Noite de São João", que compus aos dezenove anos, na praia do Laranjal, Pelotas, sobre poema de Fernando Pessoa. O Kledir, para o segundo disco da dupla, dando provas de que também se deixava atrair, tinha se inspirado em minha canção para escrever a sua "Noite de São João", com música do nosso primo Pery Souza, em que narrava as peripécias da dupla quando criança. Minha canção diz: “Porque há São João onde o festejam. Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite”. A de Kledir e Pery, gravada pela dupla: “Era noite de São João e eu saía com meu irmão, de bigode de rolha e chapéu novo em folha, brim coringa e alpargata”. Na Noite de São João que logramos juntos (com a companhia do violão de Carlos Moscardini e das cordas da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, com arranjo de Vagner Cunha), eu pulei fogueira e eles viram a luz do fogo para além do muro do quintal; brincamos com as semelhanças e as diferenças que a mesma casa produziu em nós. Foi emocionante como se o pai e a mãe estivessem ali, a dançar, como se tudo tivesse sido no mês que vem.
Até a próxima.
Abraços
Vitor Ramil"
(crônica postada na página do Vítor Ramil, no Facebook, 03/05/2013)
A NOITE DE SÃO JOÃO DO VITOR RAMIL
A NOITE DE SÃO JOÃO DO KLEITON E KLEDIR
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