A lucidez do texto da Bety Orsini que traz o pensamento de Marcia Frazão e Viviane Mosé sobre a cultura de não repetir roupas.
Uma boa reflexão sobre consumo, filosofia de vida, sustentabilidade, moda e elegância.
USE E ABUSE
"Há anos acompanho a preocupação das mulheres em não repetir roupa.
Outro dia mesmo, uma amiga estava desesperada atrás de um modelito novo
para usar num casamento, quando arrisquei um "usa o do ano passado,
ninguém vai notar". Diante do meu conselho, ela me olhou com um olhar
reprovador e concluiu: "Você acha que eu vou pagar esse mico?"
Fiquei observando a cena com cara de paisagem e de repente me dei conta
de que todas as pessoas elegantes que conheci na vida repetiam roupa. E
as sensatas também. Por isso, não foi surpresa alguma ver cabecinhas
coroadas repetindo as suas e lendo comentários maldosos da mídia como
aconteceu com a princesa Kate Middleton e a presidente Dilma Rousseff.
Nosso querido Cao Albuquerque, figurinista de "A grande família", usa
as mesmas peças há pelo menos dez anos e diz que todas elas são
envolvidas com afetividade. "Ah, Bety, graças a Deus não conheço pessoas
que não repetem roupa. E olha que eu conheço é gente...". A escritora
Marcia Frazão, que faz poesia com qualquer coisa, acha que repetir roupa
é ludibriar o tempo e se fazer eterno. Para quem não sabe, ela
coleciona "roupas almadas", aquelas dos mortos de sua família e também
as de ilustres desconhecidos garimpadas em brechós.
"Não ria,
Bety, mas uma vez topei, literalmente, com um blazer Versace, ainda com
etiqueta, num bazar de caridade. Comprei. E não por ser um Versace,
afinal ninguém iria puxar a gola para ver a etiqueta lá dentro. Comprei
porque na hora me veio a imagem de uma italiana lindíssima espatifando a
sua Ferrari numa árvore de uma estrada cheia de curvas, depois de ter
flagrado o marido com a melhor amiga." Marcia faz questão de perpetuar
instantes significativos que ficam impregnados nas roupas. "De um jeito
torto, é como se eu trouxesse outra vez para a vida esses momentos." Ela
guarda até hoje roupas dos anos 70 e, vez por outra, desfila com elas,
mesmo sabendo que a Marcia que ia ao Píer e depois tomava chope no
Castelinho não habita mais o seu corpo. "Nos dias que visto essas
roupas, dou uma banana para o tempo e para a opinião pública. Enfim,
repito roupas, tanto as minhas como as dos doces fantasmas da minha
família e das fantasmas muito loucas que recolho nos brechós."
"Não repetir uma roupa é como ouvir uma música uma só vez, é não se
deixar acariciar pelo que de familiar e afetivo existe naquilo que, como
uma roupa, nos conforta, nos cobre, nos embeleza, nos faz sentir em
casa", poetiza a filósofa Viviane Mosé. Para ela, por serem
contemporaneamente elegantes, a princesa Kate repete roupa e Michele
Obama aparece usando a popular marca J. Crew. "Deselegante é quem tem
uma armário entupido, vazando CO2 por todo lado."
Os tempos mudaram,
garante a figurinista Lucinha Karabtchevsky. Para ela, nos tempos de
hoje, menos é mais. E em todos os sentidos. Lucinha dá nota dez para
posturas mais ecológicas e sem desperdícios e atitudes mais low profile
que exibicionistas. E lembra que a enorme diferença entre as classes
sociais no Brasil é gritante e extremamente constrangedora para quem tem
um mínimo de sensibilidade. Para Lucinha, a roupa deve ser usada de uma
forma natural, não forçada. "Quanto da nossa história pode existir em
uma música, uma peça de roupa ou uma joia? Quantas vezes ouvimos a mesma
música, aquela que nos transporta e nos faz reviver momentos
importantes? Para mim, a roupa é a manifestação explícita do nosso ser,
do nosso gosto, do nosso humor, da forma que estamos nos sentindo em
determinado momento. Não repetir uma roupa é como ouvir uma música uma
única vez... É não se deixar acariciar pelo que de familiar e afetivo na
peça que nos conforta, nos cobre, nos embeleza, nos faz sentir em casa.
Algumas pessoas acham que a própria expressão "repetir roupa" não faz
mais sentido, como Rosane Feijão, autora de "Moda e modernidade na belle
époque carioca". Para ela, já existe uma compreensão de que a elegância
é uma composição muito mais complexa do que simplesmente vestir esta ou
aquela peça. Ela lembra que atualmente usa-se uma expressão em inglês, o
look, que envolve, além das roupas, acessórios que vão de sapatos e
bolsas a meias e chapéus, passando por lenços, óculos, bijuterias ou
joias. "As variáveis são tantas que a preocupação em não repetir roupa
acaba significando falta de confiança e de criatividade para usar a
mesma peça em produções com significados completamente diferentes. Se,
na Natureza nada se cria, tudo se transforma, na moda dá pra criar muita
coisa apostando na transformação."
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